A discussão ao vivo de Rachel de Queiroz e Caio Fernando Abreu

A discussão ao vivo de Rachel de Queiroz e Caio Fernando Abreu

Em 1º de julho de 1991, Rachel de Queiroz, já com 80 anos, participou do Roda Viva. O conceito deste programa da TV Cultura consiste até hoje em botar uma personalidade no meio de vários jornalistas que vão bombardeá-la de perguntas.

Pois bem, um dos entrevistadores daquele dia foi o também jornalista Caio Fernando Abreu que, inconformado com a veemência da escritora em defender a primeira fase da ditadura (de 1964 a 1967, quando Castello Branco, aparentado de Rachel, era o presidente), decide encerrar sua participação antes do final do programa, não sem antes fazer um discurso de protesto.

Depois de muita busca, encontrei um usuário no YouTube que disponibiliza o vídeo com o momento exato:

Esse trecho, acontecido depois que já tinha rolado mais de uma hora de bate-papo, me pareceu surpreendente, pois o clima entre os dois escritores não parecia ruim. Caio aparece rindo muitas vezes do pragmatismo de Rachel, apesar de, na minha opinião, ter tentando intervir e fazer perguntas sinuosas.

A transcrição está disponível no memória Roda Viva, de onde retirei todas as citações feitas a partir de agora, e o vídeo está no Vimeo.

Rachel de Queiroz explica seu apoio a Ditadura Militar 

Rachel de Queiroz foi militante do Partido Comunista, do movimento trotskista, candidata a deputada estadual pelo Partido Socialista no Ceará e foi presa pela ditadura de Getúlio Vargas. Já na maturidade, passou a fazer declarações a favor do que ela chama de 'Revolução de 1964'. A primeira participação de Caio Fernando Abreu no Roda Viva de 91, portanto, é exatamente sobre o que teria levado a autora a se tornar uma 'reacionária' com o passar dos anos. A resposta da cearense é simples e risonha:

'Na verdade, nem sou comunista nem sou reacionária, sou propriamente anarquista, sou só uma doce anarquista. É a minha posição há muitos anos.'

Em seguida, Rachel diz que foi vítima de um 'patrulhamento' e que apoiou o golpe porque ela não gostava do Jango, a quem, no decorrer da entrevista, ainda vai chamar de 'caudilho sul-americano' e 'fascista'.

A criadora de O Quinze repete algumas vezes que acreditava que Castello Branco conduziria o país a uma eleição civil para a presidência, e é firme em dizer que seu apoio aos militares se encerrou em 1967, quando Costa e Silva chega fechando o Congresso, instaurando o AI5 e botando a polícia para descer o cacete.

Com aquele vozeirão calmo, Caio cutuca a entrevistada, muitas vezes com interrupções, dizendo ser contraditório apoiar uma ditadura militar, mas repreender a truculência. Ele ouve a seguinte resposta:

'Não, espera aí. A revolução que apoiei foi enquanto Castello Branco era presidente e ele não fez tortura nenhuma, a intenção dele era fazer eleições para um presidente civil, mas ele foi praticamente deposto pelo grupo militar que era mais forte, e era o grupo reacionário do Costa e Silva.'

Rachel de Queiroz esclarece sua ligação com Castello Branco

Nesse momento, Caio aproveita para botar na roda o fato de que o ex-presidente Castello Branco estava saindo da fazenda de Rachel quando sofreu o acidente de avião que o matou em 1967. A escritora explica que tinha muitas ligações com o político - eles seriam até aparentados - e nega a possibilidade de que ele tenha sofrido um atentado.

Caio Fernando parece irritar os outros entrevistadores

O papo continua, os jornalistas passam a falar de literatura, e Caio e Rachel têm uma troca legal sobre o que eles chamam de 'desaparecimento da crítica especializada'. Em um determinado momento, o gaúcho conta que já testemunhou editores colocarem qualquer jovenzinho para 'baixar o pau' (criticar) em um escritor, e o repórter Marcos Faerman (um dos entrevistadores presentes) diz que Caio estava sendo 'leviano'. Bom, o escritor parece ficar com esse sapo na garganta, porque ele vai começar a próxima pergunta provocando: 'Rachel, continuando a ser leviano'.

No início do segundo bloco, Caio leva um pequeno fora do apresentador, Jorge Escosteguy, por interromper a entrevistada. Tudo fica calmo, até que pedem a opinião de Rachel sobre Collor, Lula e Brizola. A escritora é vaga sobre o então presidente Collor (diz que esperava que ele consertasse o Brasil), elogia a inteligência de Lula, mas critica o partido dele ('obscuro') e diz que não fala sobre Brizola (ela detestava ele). A partir daí, Caio a interrompe e, pelo menos no texto, se sucede essa discussão, o ponto mais tenso no meu entender:

A discussão entre Rachel de Queiroz e Caio Fernando Abreu

Caio Fernando Abreu: Rachel, eu me dou o direito de discordar do que você disse do PT e do Brizola. Você não acha que o Collor está dando continuidade ao que havia de mais lamentável no golpe militar de 64 que você ajudou?

Rachel de Queiroz: Não. Você está dizendo isso.  

Caio Fernando Abreu: Não, estou perguntando.

Rachel de Queiroz: No golpe em que ajudei, não. Ajudei o Castello. O resto não. No AI-5 não tive a menor participação...  

Caio Fernando Abreu: Depois do AI-5, você não acha que o Collor está dando continuidade a isso?

Rachel de Queiroz: Eu lhe dou a liberdade de achar ruim o Collor e os outros todos, como você está me dando a liberdade. Não discuto...  

Caio Fernando Abreu: Não, eu queria me limitar a essa pergunta: você não acha que o Collor dá continuidade à deturpação?

Rachel de Queiroz: Você está dizendo isso e você não diria isso... 

Caio Fernando Abreu: Tenho uma interrogação aqui.

Rachel de Queiroz: Você está dizendo isso numa televisão oficial, quer dizer que há um grau de liberdade muito maior, que nós devemos... desde o Sarney que nós temos essa liberdade.  
Caio Fernando Abreu: É o mínimo.

Rachel de Queiroz: Não é o mínimo, não.  

Caio Fernando Abreu: Acho que é o mínimo, liberdade.

Rachel de Queiroz: Não é o mínimo, não, porque você é muito jovem, você não passou os tempos piores.  

Caio Fernando Abreu: Tenho 42 anos e estive preso em 68.

Rachel de Queiroz: Pois então não aprendeu com o tempo, porque passamos tempos muito piores.  

Caio Fernando Abreu: Acho que estou aprendendo coisas.

Jorge Escosteguy: Por favor [interrompendo Caio].  

Caio Fernando Abreu: Bom... [abre os braços, desistindo de continuar a discussão]"

O assunto muda e, conversa vai, conversa vem, Rachel volta a defender Castello Branco, dizendo que ele não era um conspirador, ao contrário dela e de seu grupo, que ela não evidencia qual era.

É aí que Caio, começa a pedir a palavra e chega a dizer no fundo 'Isso é um absurdo'. Logo em seguida, ele faz o famoso pronunciamento que vocês tiveram a oportunidade de assistir acima (mas que vou deixar por escrito, porque vai que, um dia, o vídeo é tirado do ar).

"Caio Fernando Abreu: Quero falar uma última coisa. Estou me sentindo muito constrangido de estar aqui.

Rachel de Queiroz: Por quê? 

Caio Fernando Abreu: E a última coisa, não vou me tornar constrangedor. Por várias coisas que você falou, concluo que você colaborou para coisas muito negativas nesse país, no meu ponto de vista. Compreendo que todos nós somos humanos, erramos, nos equivocamos e tal, mas estou me sentindo extremamente constrangido de estar na posição de render homenagem a um tipo de ideologia que profundamente desprezo.  

Jorge Escosteguy: Caio, você tem que fazer perguntas, e não render homenagem, desculpe.

Caio Fernando Abreu: Está certo. 

Jorge Escosteguy: A entrevistada é a escritora Rachel de Queiroz.

Caio Fernando Abreu: Só queria dizer isto: não tenho mais perguntas a fazer. Minha participação se encerra aqui. 

Rachel de Queiroz: Gostaria de responder a você que nós estamos num país democrático, eu respeito as suas posições e espero que você respeite as minhas.  

Caio Fernando Abreu: Respeito, tanto que me calo.

Rachel de Queiroz: Pois é, se as minhas posições são constrangedoras, acho as suas também muito constrangedoras para mim. E realmente estou sendo exigida a me pronunciar sobre esses temas que eu não gostaria de ser, para não ser descortês com você, de forma que é recíproca a nossa posição."  

Apesar de tudo isso, Caio continua em silêncio no estúdio, mas sem prestar atenção no papo - em um take é possível vê-lo escrevendo num papel.

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7 Comentários

Teresa cristina 12 de Novembro de 2017 às 12:10

Noooossssa, que entrevista tensa! Nunca tinha visto! O Caio pressionou a Rachel o quanto pôde, mas ela não se rendeu, nem alterou a voz, estranha! O interessante é que ela antes de apoiar o regime militar, foi militante de esquerda perseguida pelo governo Vargas, foi até presa em 1937, o que a fez ir para o lado oposto é realmente um mistério! Será que tinha uma paixão por Castello Branco, daí a mudança radical de ideologia? Mistério!

Antonio Francisco 17 de Novembro de 2017 às 11:27

Por muito menos eu tinha mandado esse tal de Caio Fernando ir para a "baixa da égua", como dizemos aqui no Ceará.
De qualquer forma ele conseguiu os seus "quinze" minutos de fama, ou não, discutindo com nada mais nada menos que a autora de O Quinze , dentre outras obras conhecidas mundialmente.
Mas pior ainda, foi esse comentário, com todo respeito, da Teresa cristina falando de uma possível paixão de R.Q. por C.B., fala sério ...

Marcelo 23 de Dezembro de 2017 às 17:21

Esse "tal" de Caio Fernando Abreu é um escritor conhecido mundialmente, autor do clássico Morangos Mofados, entre outros excelentes livros. Se você não entende de literatura, abstenha-se a sua ignorância.

Gustavo 20 de Maio de 2020 às 08:15

Caio... Perfeito.

Raquel 10 de Julho de 2020 às 00:19

Caio... babaca...
Não respeitou Rachel de Queiroz.

Carlos 5 de Maio de 2021 às 21:43

Agora temos a entrevista completa no YouTube. O que vemos ali: um escritor em ascensão e torturado de um lado, e uma escritora reconhecida, de família aristocrática, rica... foi um perfeito choque de gerações. Lembrando que há ali uma proximidade muito forte entre Raquel e Castelo Branco, de tempos anteriores ao golpe. A entrevista ficou para a história com a coragem do Caio em questionar ao máximo que pode uma escritora consagradissima como nunca antes.

W. Leite 6 de Junho de 2021 às 11:28

Respeito??? Uma pessoa que apoiou um golpe militar merece respeito?

A obra de Rachel de Queiroz é indiscutível. Mas sua postura como apoiadora do golpe militar de 1964 é algo desprezível e vergonhoso.